Saturday, January 30, 2010

CRATIA

Sempre achei que devíamos dar mais atenção à etimologia. A origem das palavras é um dos segredos mágicos a ser descobertos, nos tempos que correm. Se investíssemos algum do nosso tempo a pesquisar o significado que cada palavra encerra, haveríamos de descobrir como, afinal, tudo é tão mais simples do que parece. Grande parte das palavras já nos dá pistas sobre o seu significado. E é fascinante como se formam pequenos jogos de puzzles com as palavras. Uma mesma palavra, combinada com diferentes outras, assume-se das mais diversas formas e conteúdos. Como percebo o que levou Jean-Paul Sartre a escolher como título de um dos seus livros “As palavras”...

Cratia é uma palavra grega que está na origem de termos como aristocracia ou democracia. Significa poder. Quando precedida de “aristo” (os melhores), significa “o poder dos melhores”, no sentido em que as classes sociais mais elevadas exerciam o poder de uma forma natural e aceite. Aristocracia é um regime de sociedades estratificadas em classes. Democracia vem de Demos (povo) e traduz “o poder do povo”. Quando ouvi Carlos Amaral Dias dizer que “Não há nada mais afrodisíaco para o Homem do que o poder”, soube estar a ser confrontado com uma das grandes verdades do comportamento humano individual e socialmente.
A verdade, é que, seja nas relações profissionais, familiares ou meramente sociais, se desenrolam lutas de poder constantes, a um nível quase sempre subliminar e inconsciente. Esta faceta está em cada pequeno gesto dos nossos dias, desde a sedução à simples forma como nos cumprimentamos. Até na forma como um casal dorme ou como uma família se senta à mesa estão relações de poder em causa.

Quem, como eu, nasceu na década de 80 do século passado, perdeu quase todas as grandes realizações e personalidades da humanidade. Não conheci a Biblioteca de Alexandria, não vi nenhuma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo (embora ainda haja esperança de conhecer as Pirâmides de Gizé!), não conheci Jesus Cristo, nem Nostradamus. Conheço Leonardo da Vinci à distância. Nem Cleópatra tive a oportunidade de conhecer. Ou ainda Albert Einstein, por exemplo... Não vivi a invenção da roda, nem a descoberta do fogo. Ah, como gostaria de ter vivido nos tempos áureos das sociedades helénicas...!
Nasci depois do Homem ter chegado à Lua e até depois de Pelé ter deixado de jogar. Era demasiado novo para apreciar devidamente o jogo de Maradona.
Tenho alguns consolos, como ter vivido o nascimento da internet, ter assistido a Kasparov a jogar xadrez, ter vivido na época de Eduardo Lourenço ou ainda ter tido o privilégio de ver Zidane a jogar futebol e Michael Jordan a jogar basquetebol. Assisti a concertos da Diana Krall...
Bem, mas este pequeno ensaio não é um role de desabafos acerca do tempo que se viveu antes de mim. Devo reconhecer que o século XX e, presentemente, o XXI trazem coisas muito boas, mas a grande verdade é que nasci numa época em que pouco havia para inventar. A minha geração já apanhou todas as revoluções feitas, todas as sociedades descobertas. As gerações que nos antecederam deixaram-nos a dura tarefa de ter que descobrir o prazer de viver sem grandes desafios pela frente.
E é por tudo isto que me sinto um homem de grande sorte por ter tido a oportunidade de viver um dos momentos mais singulares da história recente do meu país.

No dia 5 de Fevereiro de 2008, entrava em vigor a nova tarifa dos transportes semi-colectivos em Maputo, anunciada alguns dias antes, após um acordo entre as entidades governamentais e privadas. Os preços de 7,5 e 10 meticais viriam substituir os de 5 e 7,5 meticais que estavam em vigor até à data.
A cidade acordou sobressaltada. Uma greve repentina se havia instaladao e alastrado. Começaram a surgir relatos de que as populações estavam a bloquear a circulação dos chapas e haviam montado barricadas nalgumas das estradas da cidade e arredores.
Aos poucos, a situação foi-se propagando, com a força de um vírus altamente contagioso. A sociedade estava doente e todos éramos vítimas...
Ouviam-se tiros da polícia tentando suster os ânimos mais exaltados e salvaguardando a sua própria integridade. Carros foram incendiados e lojas vandalizadas. Quem circulasse de carro pelas zonas quentes desse dia corria o risco de ser apedrejado. As escolas fecharam, lançando para a rua as crianças, principais manifestantes desse dia, e toda a actividade da cidade parou. Em casa, assim como na rua, estávamos todos mergulhados no tumulto social que se fazia sentir.
Há quem lance a suspeita de que tenha havido alguma mente a organizar toda agitação e revolta, com o argumento de que não é normal que a população tenha agido daquela forma de modo puramente espontâneo. É possível, e até provável, mas não creio ser importante especular acerca de uma coisa que nunca viremos a saber. Por mim, prefiro falar do que sucedeu. Daquilo que se viveu e sentiu, de facto.
O exercício que faço é pessoal e reflecte o que eu penso e vejo. Não receio enganar-me nas minhas análises, pois faço-as de forma livre e seguindo aquilo que a minha mente vê e sente.

Quem pensa que o que se passou foi simplesmente uma manifestação de desagrado popular face à subida dos preços dos transportes vê apenas a ponta do iceberg. Se assim fosse, não seriam atingidos outros que não os transportadores ou, até poderia ter havido apenas um boicote aos chapas, por exemplo...O que se passou foi uma revolução social, na verdade. O eclodir de um sentimento social que vinha sendo cultivado dentro de cada um de nós, em segredo, e durante muito tempo... a subida dos preços foi o pretexto para tudo o que se seguiu.
Desde as cheias, ao terramoto, à explosão do paiol de Malhazine e chegando à subida generalizada dos preços, a verdade é que a população estava insatisfeita e até revoltada com o estado das coisas. Ora, este tipo de fenómenos é gradual e vai sendo contido até onde é possível. E assim foi...a última gota de água caiu e o copo entornou.
O povo saiu à rua com o sangue a ferver e travou, mais uma vez sem se dar conta, uma luta pelo poder. Pelo poder social. E, quando nessa noite, o governo veio anunciar que, atendento à insatisfação manifestada pelas populações e sendo um governo que zela pelo bem estar do povo (só não ouso citar por não poder precisar as palavras exactas que foram empregues), estava suspensa a entrada em vigor da nova tarifa de preços dos transportes, foi claro para mim que a luta havia sido ganha. A democracia deixou, por um dia, de ser um nome para ser, de facto, um modelo que se fez sentir como a Demos Cratia. O povo tomou o poder nas suas mãos pela força e o governo reconheceu-o de forma inteligente.
Esta é a verdadeira e primeira vez em que eu vi o que é a democracia, na sua essência mais selvagem. Aprendi muito...quem diz que a voz do povo é a voz de Deus nunca viu as vozes e gestos de populações enfurecidas.
O que eu vi foi um gesto de revolta social. Uma manifestação contra a opressão a que as pessoas se sentem acorrentadas. E foi tudo cheio de gestos simbólicos... a queima de pneus (que no nosso imaginário colectivo estão associados a gestos de justiça popular); a um assalto e vandalização de uma escola com o nome do Presidente da República sob gritos do nome do próprio; o impedimento de acesso da televisão estatal às zonas de turbulência pela sua ligação ao governo; o ataque a todas as formas de riqueza, como carros ou lojas... Enfim, creio que foi um exercício de exorcismo de muitos fantasmas que pairavam sob a nossa sociedade. E ainda bem que aconteceu. Apesar de todos os excessos que foram cometidos e de todas as insensatezes que se fizeram sentir, a verdade é que, mais cedo ou mais tarde, algo parecido iria ter que acontecer. E o povo tem sempre razão quando se manifesta de uma forma tão visível.

Reforço, ainda, a minha descrença em toda a forma de emoções colectivas. Não vejo uma forma de emoção colectiva que se mantenha fiel à sua origem. Mesmo uma situação como esta do dia 5, que tinha um motivo comum e conhecido, desembocou em atrocidades e excessos perfeitamente condenáveis e evitáveis. O que eu digo é que cada pessoa é motivada por motivos pessoais, e não há como conjugar multidões num mesmo evento com uma motivação comum. É possível, sim, que estejam juntas, mas cada uma a sentir e a viver as suas próprias emoções. Emoções são da ordem do individual, e nunca da ordem do colectivo.

Muito poderia falar sobre os erros estratégicos verificados. Por um lado, não é possível pedir ao governo que baixe o preço dos combustíveis, uma vez que Moçambique se limita a comprar o crude, sem qualquer controlo sobre o seu preço. E que tem estado atento às questões de economia global saberá que o barril de petróleo tem vindo a registar preços historicamente elevados. Do mesmo modo, não creio que se possa imputar aos transportadores a conta desta subida dos preços dos combustíveis. Tal seria matar o negócio. É necessária encontrar uma forma de elevar o valor cobrado por lugar nos transportes, para compensar os empresários sem, face às condições sociais e económicas actuais, imputar esse mesmo valor aos consumidores finais. Assim, ou o Estado aumenta o salário minímo nacional para suportar as medidas inflacionárias que se verificam (a medida mais impraticável), ou subsidia o combustível para os transportadores ou paga a diferença do aumento de preço fictício sobre os passageiros ou....a hipótese que seria mais lógica, mas menos ponderada, o Estado deveria ter investido há muito tempo numa rede de transportes urbanos moderna e eficaz. Assim, reduzir-se-ia a situação de dependência que se vive actualmente, relativamente aos privados, num sector tão importante para qualquer sociedade dita moderna. Enfim...se se voltasse ao princípio e se reestruturassem certas medidas de forma adequada tantos transtornos seriam evitados.

Na verdade penso que foi muito bom o que aconteceu. A sociedade sacudiu alguma da poeira que carregava e exorcizou alguns dos fantasmas e mitos que a constroem. Pela primeira vez, em muito tempo, abordaram-se temas transformados em tabus e acredito, sinceramente que foi um processo terapêutico de grande utilidade. Talvez alguma tensão tenha sido esvaziada e nos reposicionemos todos de uma forma mais fresca e positiva para seguir com as nossas vidas, individuais e colectivas de forma mais saudável.
Por outro lado, o poder voltou a estar nas mãos do demos e isso é simbolicamente fundamental para todo o equilíbrio social. Apesar de estarmos longe de uma democracia perfeita, se é que ela existe em algum lado, demos passos necessários para consolidar um sistema político e filosófico que elegemos para organizar e gerir as nossas interações sociais, culturais e económicas.

De tempos a tempos, cada sociedade se vê confrontada com acontecimentos que a levam a pôr em causa os próprios valores que a constituem, ouvi num filme, certo dia...e penso que foi um pouco isso o que se passou. Só posso estar agradecido ao destino por me ter dado a oportunidade de viver in loco momentos como este.

Não sei, francamente, se haverá algum desenvolvimento relevante e visível, que saia de toda esta turbulência, mas, tal como Luis Freitas Lobo, eu também “sou dos que esqueço os resultados. Só recordo as emoções que vivi.”

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