Saturday, January 30, 2010

INCOERÊNCIA

“Seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo.” Gabriel, o Pensador

Tantas vezes ouço gritos de revolta contra o que a nossas sociedades se habituaram a chamar de incoerência. Faz-se apelo a uma unidade; a uma harmonia mental e emocional. A uma estabilidade de carácter. A civilização passa muito por uma estandardização de tudo, desde aspectos exteriores até algo tão íntimo como a nossa própria personalidade. Somos ensinados a moldar-nos. Instigam-nos para que nos definamos. Só quando somos um só, uno e consistente somos considerados totais e completos; prontos para desempenhar o nosso papel de actores sociais numa sociedade cada vez mais igualitária nas suas desigualdades invisivelmente visíveis.

A nossa socialização torna-nos rectos. Deturpa a nossa visão periférica e faz com que olhemos numa só direcção. São-nos dados conhecimentos comuns, aprendizagens comuns para que nos tornemos pessoas comuns. Todos iguais, com ligeiras semelhanças, mas com essências oriundas de uma mesma raiz cultural.

Sempre me fez profunda confusão a existência de uma necessidade de coerência. Para mim, ser coerente é ser o mesmo. E faz parte de tudo o que vive na natureza viver, e viver passa por transformar. Evoluir; regredir; tudo é estar vivo. Viver é mudar. Ser coerente é permanecer-se imutável. É ser hoje o mesmo que fui ontem. É pensar hoje o mesmo que pensava anteriormente e dizer hoje o mesmo que dizia outrora. Isto é sinónimo de que não há vida. Não há movimento. Não há experiências, sejam elas boas ou más.
Qualquer que seja a situação por que passemos, dela devemos extrair algum ensinamento. Quer seja para pensar: isto não é bom para mim, mas algo devemos retirar de tudo quanto fazemos. Isso é aprender. Aprender é interagir com o mundo à nossa volta. É sermos dinâmicos e activos. O contrário é ser-se passivo e estático como uma pedra. É contemplar a vida, em vez de a viver.

Cada dia deve transformar-nos um pouco. A vida nada mais é que uma estrada de processos constantes e incessantes de novas facetas e caracteres para nós. Devemos explorar tudo, dentro e fora de nós. Ser vários dentro de um grande e abrangente EU. Estas duas palavras devem ser amplas, sempre com maiúsculas, como na língua inglesa, para compreender em si todos os vários eu´s que podemos albergar na nossa existência temporal.

O tempo urge. Foge como areia que escorre por entre os nossos dedos, ainda que fechados. Nada podemos fazer que contrarie a natureza das coisas. Já existia vida antes de cada um de nós estar vivo, e continuará a existir depois de nos extinguirmos.
Devemos captar o máximo que pudermos enquanto vivemos. Saborear cada sensação como se fosse nova. Aprender tudo para em seguida desaprender. Não nos devemos apegar ao que é volátil, e tudo é nesta vida..

A sabedoria passa, também, por sermos habilidosos o suficiente para reconhecermos com humildade que somos pequenos e insignificantes, quando colocados fora de nós mesmos. Mas só quando olharmos para dentro, com olhos de ver e não de olhar, descobriremos que tudo o que importa está aí: a eternidade, todos os tempos, felicidade, todos os segredos sobre a vida, sobre deus e o amor..nós somos o último mistério das nossas próprias vidas.

A estrada para o conhecimento tem vários caminhos, e em cada um há algo para aprender e apreender. Escolher um ou dois é limitarmo-nos a nós mesmos. A coerência é uma palavra que foi inventada para nos impedir de pensar livremente. Por vivermos fora da prisão, não significa que sejamos livres, mas apenas que vivemos em liberdade. Ser-se livre é um trajecto muito mais duro e penoso. Um processo de desconstrução contínua. Heterodoxia constante e incessante. Coerência é ver o mundo de dentro da caverna de Platão, ou através de uma pala que nos força a mirar sempre em frente.

Somos todos escravos de nós mesmos, se não soubermos aprender a ser inconstantes. Ser incoerente é sinal de mudança. Mudança é sinal de vivência, e vivência é sinal de experiência. O mundo está dentro de nós. É preciso descobri-lo. Não para saber, mas para desaprender. Só quando desmontarmos e nos desprendermos de tudo quanto sabemos seremos livres. A incoerência é a chave sagrada para a descoberta da verdadeira essência: EU.

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