Saturday, January 30, 2010

O intervalo do cinema

Estamos habituados a pensar, escrever, falar e centrar as nossas atenções sobre o princípio e o fim das várias situações das nossas vidas. Sempre debruçámos as nossas opiniões sobre esses dois extremos. O princípio de um livro; o final de um filme; o princípio de uma música; o fim de uma peça de teatro. Estes são alguns exemplos de princípios e finais muito comentados. Mas há outros: o princípio de uma vida; o final de uma história de amor..
A lista é interminável. A verdade é que, na verdade, o fim e o princípio sempre foram os principais protagonistas. O espaço que fica entre um e outro sempre foi um espaço perdido; esquecido e pouco valorizado. Este texto pretende ser um elogio ao intervalo; uma ode ao que medeia. Falarei essencialmente sobre um tipo de intervalo específico: o intervalo do cinema.

Em tudo se torna mais fácil identificar o princípio e o fim do que propriamente o intervalo ou o meio dessa mesma coisa. Só os extremos são definidos, concretos, imutáveis e objectivos. O espaço interior é amplo, subjectivo, quase me apetece dizer infinito. Mas, na verdade, tudo o que é realmente importante, o que é feito por nós, ou que nos acontece, acontece, justamente no que está entre o princípio e o fim. É aí que se desenrola a vida. É aí que se constróem as estórias e é aí que estamos, todos nós, a construir a História.
A nossa vida é o que fazemos entre o nascimento e a morte. Isto é, entre o princípio e o fim.

Pensava para comigo mesmo, outro dia, que tudo o que é bom na vida tem intervalos. Por mais pequenos (ora, que raios! Por que carga de água se pode dizer «mais pequeno» e não se pode dizer «mais grande»? Num caso, a existência da palavra «menor» não invalida o emprego correcto da expressão «mais pequeno», mas a existência de «maior» já invalida que se diga «mais grande». Haverá alguma explicação para este curioso fenómeno da língua portuguesa? A dúvida irá permanecer..) que sejam, às vezes quase imperceptíveis, todos os bons momentos e todas as boas sensações que vivemos têm pequenos intervalos.

Cada vez me convenço mais de que a primeira vez é realmente única. Em tudo. A primeira vez que fazemos algo ou que experimentamos algo irá certamente condicionar as restantes vezes que se seguirão. Se for positiva, quereremos que as próximas vezes se assemelhem àquela bela primeira vez. Se for negativa tentaremos que não se repita. Quer num caso quer no outro, estaremos sempre a pensar na primeira vez. A tomá-la como referência. Num caso positiva, no outro negativa. Mas sempre como referência. E é isso que lhe confere uma importância tão grande.

Lembro que a primeira vez que fui ao cinema o filme tinha intervalo. Não me lembro em que cinema foi, nem com quem fui, nem que filme fui ver, mas sei que tinha intervalo. Foi nesse dia que passei a conhecer um novo mundo: o do cinema. Uma viagem diferente, que nos proporciona uma abstracção extraordinária e incomparável. Abençoados sejam os irmãos Lumière! Já compararam a sensação de assistir ao mesmo filme no cinema e na televisão? Tanta diferença! E porquê? Muito simplesmente porque o cinema envolve muito mais que o mero visionamento da película. O próprio ambiente do cinema é mágico. Mesmo que se tenha uma grande sistema de som em casa e apaguemos as luzes e aumentemos consideravelmente o volume, de modo a recriar o cinema em nossa casa, não se consegue trazer o cinema para a nossa casa.
Mas, voltando ao que dizia anteriormente, quando saí do cinema, nesse dia, no meu imaginário sobre o cinema, havia os seguintes aspectos: o volume elevado, a escuridão, as cadeiras individuais, o ecrã enorme e o intervalo. Se alguém me perguntasse como era o cinema, decerto haveria de referir o intervalo como uma das suas componentes. E desde esse dia que assumi que o intervalo faz parte do filme, quando visto no cinema.

Já assisti, depois disso, a inúmeros filmes no cinema. Uns com intervalo, outros sem. Mas sinto sempre uma ligeira estranheza quando não há intervalo. Como se fosse sobrecarregado com demasiada informação sem tempo para respirar, para digerir e saborear a informação. O intervalo do cinema é terapêutico, ao contrário do intervalo da televisão, que é aborrecido.
No cinema, essa pausa é bem vinda. É o momento de parar. Parar para pensar, se for necessário, ou para parar de pensar, se for necessário. Serve para irmos ao wc..para comermos algo, para bebermos algo..mas sempre com o filme como pano de fundo. Nunca nos desconectamos por completo do filme. Mesmo quando saímos da sala, conversando, ou não, com alguém, o filme está sempre presente. Adormecido; pausado, mas nunca esquecido.
Quando optamos por permanecer na sala, a sensação é ainda mais forte. Vivi os mais belos intervalos de cinema da minha vida no Cinema Quarteto, em Lisboa. A sala antiga..a música cinematográfica..tudo, todo o ambiente faz com que o intervalo seja um complemento do filme. Por vezes, quando o filme é mau, chega a ser mesmo o melhor momento do filme.
E é incrível como o intervalo do cinema parece ter sempre a duração certa. Não fico com a sensação de ter sido muito curto ou muito comprido. Parece sempre bem medido.
Se estamos a ver um bom filme, o intervalo dá-nos os momentos para nos deliciarmos com o prato que nos está a ser servido. Lembramos os melhores momentos do filme e digerimo-los de uma forma saudável; com tempo e vontade. Sem pressas desnecessárias. E quando soa a badalada que anuncia o recomeço do filme, voltamos a concentrar-nos de forma plena no mesmo. Com esperança de que a segunda parte seja, pelo menos, tão boa quanto a primeira.
Se o filme for mau, o intervalo surge como salvação. Como fonte de esperança. Procuramos pensar em algo que nos distraia do mau filme a que estamos a assistir e lançamos preces silenciosas para que a segunda parte seja, então, positiva.
Há, ainda, a possibilidade de estarmos acompanhados. É curioso como as pessoas sentem uma necessidade de ir ao cinema acompanhadas. Há quase um pavor a ir até à sala de cinema sozinhos. Não sei se é por receio do que poderão pensar de si, ou se é por temor que as vejam como criaturas solitárias. A verdade é que assistir a um filme, no cinema não permite grandes conversas. São, diria até, totalmente desaconselháveis. Incomodam os vizinhos e retiram-nos a atenção necessária para uma total compreensão do próprio filme. O intervalo surge, como o momento em que podemos partilhar com o nosso parceiro as nossas opiniões (convergentes ou divergentes) sobre a estória a que se assiste.
Num filme sem intervalos, geralmente em cinemas modernos, e cuja principal intenção é realizar o maior número de sessões diárias, de modo a rentabilizar de forma mais imediata o investimento, os filmes são-nos dados em forma de bloco. Muito conteúdo se perde, e muitas vezes temos vontade de voltar a ver o filme. Não necessariamente pelo facto de o termos adorado, mas por sentirmos que há informação que chegou até nós de forma incompleta. A nossa atenção tem que estar sempre alerta. Não podemos perder nenhum detalhe do filme, pois não há tempo para pensar, para analisar. Temos que receber informação de forma incessante durante, geralmente, mais de noventa minutos.

Um bom intervalo é sempre sinónimo de um bom filme.

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